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A HOMOSSEXUALIDADE, A NATUREZA E A REPRODUÇÃO

A reprodução está intimamente ligada ao aparecimento da vida. Sem reprodução não há vida. No entanto há muita vida sem sexo. Os primeiros organismos vivos a evoluírem na Terra reproduziam-se assexuadamente, isto é, o progenitor fazia uma cópia da sua molécula ou moléculas de ADN e passava-a à descendência. Este é o método preferencial de reprodução das bactérias e como são as bactérias os seres vivos mais abundantes no nosso planeta (elas estão literalmente por todo lado, em todas as partes do planeta, desde as camadas mais profundas do gelo que cobre o ártico, às riquíssima floresta tropical, não esquecendo as profundezas dos oceanos, nem as fontes termais no fosso das Marianas do Oceano pacífico, onde elas habitam ambientes de centenas de graus centígrados), podemos concluir que a forma mais comum de reprodução é a reprodução sem sexo.

Não são só as bactérias que se reproduzem assexuadamente, mesmo no reino animal, milhões de anos à frente na evolução existem insectos que se reproduzem desta forma, através de um processo que denominamos de partenogénese. Isto para dizer que no mundo vivo reprodução não significa sexo.

O sexo surge mais tarde na evolução dos organismos vivos e, é certo, aparece como estratégia de recombinação genética – ou seja, associado à reprodução de novos seres que possuem uma recombinação do património genético de cada progenitor. Apesar destes exemplos, o sexo é a forma de reprodução privilegiada no reino animal e a única conhecida entre os primatas e os humanos.

O sexo só serve para a reprodução?

Vamos começar por analisar uma outra capacidade humana (e esta exclusivamente humana) do ponto de vista evolutivo: a linguagem. São óbvias as vantagens da linguagem sob a perspetiva evolutiva e de adaptação. A linguagem permitiu ao homo sapiens sapiens uma melhor organização da vida quotidiana, o desenvolvimento de novas técnicas de caça e pesca, o ensino e a aprendizagem dessas técnicas, o aparecimento da agricultura, entre outras. A linguagem complexa da nossa espécie é também aquilo que nos distingue dos restantes primatas, ao mesmo tempo que foi ela que permitiu o desenvolvimento e o aperfeiçoar de outras capacidades cognitvas, como o cálculo, o raciocínio lógico, a memória, etc. Contudo estamos cientes que hoje (e pelo menos desde o aparecimento das primeiras civilizações – mesopotâmia, helénica, etc..), a linguagem não serviu só propósitos pragmáticos de sobrevivência.

Com a linguagem escrevemos poemas e música, desenvolvemos a matemática e daí as restantes ciências, criamos e desenvolvemos a filosofia (ou filosofias). Ou seja, apesar da linguagem ter surgido nos primeiros homens por seleção natural com clara vantagem na sobrevivência da espécie, ela foi mais além do desígnio puramente biológico. E foi esse mais além que permitiu, se não o aparecimento, pelo menos o desenvolvimento das primeiras civilizações, da literatura, da filosofia ou de muitas outras formas de expressão artística. A finalidade da linguagem é apenas o desenvolvimento de técnicas de caça e pesca e organização social do homem das cavernas? Foi assim que ela terá surgido mas não serve hoje só para esse fito.

Muitos autores aplicaram a teoria da seleção natural e/ou artificial Darwiniana à evolução das sociedades e existe alguma legitimidade nessa abordagem. A passagem da pesca e da caça à agricultura como forma de subsistência implicou que os seres humanos acumulassem cereais para mais tarde consumir, armazenando-os e isso está provavelmente associado às primeiras formas de registo. Ou seja a agricultura estará de algum modo relacionada com o aparecimento da escrita e de formas rudimentares de aritmética – era preciso contar, somar, subtrair e multiplicar o excedente agrícola e registá-lo em meio físico que permanecesse para além da memória. As primeiras formas de arte rudimentares, como as primeiras pinturas rupestres ou até a música terão surgido talvez ainda antes do desenvolvimento da linguagem complexa. E os primeiros rituais de representação do rea

l ou do imaginado terão certamente funcionado no sentido do ordenamento, organização e fortalecimento da coesão entre as primeiras comunidades de seres humanos. A linguagem permitiu um desenvolvimento extraordinário de todas estas componentes e o desenvolvimento da cultura. E toda esta cultura é seguramente adaptativa no contexto social e permitiu aos primeiros grupos e primeiras civilizações de humanos uma melhor interacção entre si e com o meio ambiente, tirando o máximo proveito deste e aumentando as suas hipóteses de sobrevivência, reprodução e hereditariedade.

Deste ponto de vista a teoria da selecção Darwiniana faz algum sentido no contexto sócio-cultural. No entanto sabemos que as formas de expressão culturais e artísticas ou a fonética, a escrita e a gramática não estão inscritas nos genes. Não são “naturalmente” humanas, caso contrário nasceríamos a saber falar, escrever, desenhar ou cantar, o que não é verdade.

Em suma, a linguagem serve para muito mais do que facilitar a sobrevivência biológica de um organismo num dado meio ambiente e a forma concreta de ela se expressar (o idioma, as regras gramaticais, a fonética utilizada) nem sequer está inscrita nos genes – é reproduzida por transmissão sócio-cultural. Por esta razão concordamos todos que a finalidade da linguagem não é a sobrevivência de grupos de seres humanos na savana Africana ou na floresta Mediterrânica –é, felizmente, muito mais do que isso!

Então e a sexualidade? É certo que o sexo surgiu com a finalidade da recombinação genética, tornando a reprodução mais eficaz. Mas ele serve só para isso?

Associar o sexo a reprodução é reduzi-lo a uma pequena parte das suas funções ou então a uma pequena percentagem da forma como ele é utilizado. Voltemos ao mundo animal. Estão muito bem documentados casos de homossexualidade em praticamente todas as espécies de mamíferos – claramente a sexualidade entre indivíduos do mesmo sexo não tem finalidade reprodutora. Mas mesmo a sexualidade que envolve animais de sexos diferentes não se cinge unicamente à reprodução. Muitas espécies utilizam a sexualidade, ou formas de expressão sexual, como meio de controlo social, como forma de estabelecimento de relações sociais dentro do grupo e por vezes até como modo de comunicação – esses exemplos estão também muito bem documentados, pelo menos no mundo animal. Animais com ciclos reprodutivos, períodos de cio, muitas vezes iniciam relações sexuais fora desse mesmo ciclo – período no qual não há reprodução porque não há produção de gâmetas. Nos primatas mais próximos de nós, os chimpanzés que não têm períodos limitados de cio, a actividade sexual também exibe formas de expressão distintas dissociadas da reprodução. Em alguns desses casos, o sexo tem por objectivo a afirmação ou definição da posição e do poder do indivíduo no grupo. É muito provável que, pelo menos o bonobo (senão mesmo todos os primatas), uma espécie de chimpanzé que vive na África Central, tenha relações sexuais sobretudo pelo prazer e não apenas para se reproduzir, dada a sua “exuberância sexual”. Não há nada de mais natural, por tudo isto, do que a sexualidade sem a finalidade da reprodução.

Tal como a linguagem permitiu o aparecimento da civilização e ultrapassou largamente o seu objectivo adaptativo inicial, também a sexualidade humana o fez.

Desde que temos registos históricos das primeiras civilizações que os seres humanos têm sexo de múltiplas e variadas formas e com múltiplos e variados objectivos que não apenas a reprodução. Nas sociedades helénica e romana a sexualidade era vivida, entre as elites, apenas como forma de prazer ou então como afirmação de um estatuto social ou recompensa por esse estatuto. Em muitas tribos dispersas pelo mundo a sexualidade, em alguns casos com sexo homossexual, é utilizada como forma de ritual de passagem a outra idade ou estatuto social. Alguns autores defendem que estas “outras funções” do sexo podem representar formas de adaptação ou evolução das civilizações (deixarei esta discussão para uma outra vez) mas independentemente disso, nestes casos o sexo não tem uma função reprodutora. O sexo nunca deixou de ter uma função reprodutora, mas não tem “só” uma função reprodutora, tem muito mais do que isso e esse muito mais está intimamente ligado à evolução das nossas sociedades e civilizações.

Se achamos que o sexo tem apenas ou sobretudo uma função reprodutora toda a humanidade está errada. Isto porque sempre que usamos um preservativo, uma pílula anticoncetiva, um dispositivo intra-uterino, o coito interrompido, o método da temperatura ou do muco, estamos automaticamente a desligar o sexo da reprodução. Estamos a agir propositadamente para que o sexo exista sem reprodução. Qualquer indivíduo que afirme que o sexo serve para nos reproduzirmos, das três uma: ou é infértil e incapaz de empatia com os restastes seres humanos férteis; ou tem pelo menos uma dezena de filhos e está a caminha da 2ª dezena ou é hipócrita e pratica aquilo que contradiz o seu argumento.


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